domingo, setembro 27, 2009

COMIDA E CULTURA [1º PARTE]

Num dos meus livros de cozinha que se chama "Cozinha Regional Portuguesa" de Maria Odete Cortes Valente estava eu a ler a introdução o que muito me agradou...

Comida e cultura:
Afirma-se repetidamente que lemos pouco e que raras vezes saímos de casa para ir ao teatro, a concertos e a outras manifestações oficialmente classificadas de culturais.
Tudo isto é verdade, já que somos pouco dados, por um conjunto de razões que não interessa aqui discutir, à prática de «actos culturais conscientes».
Um povo, porém não exprime a sua cultura unicamente através de actos deste tipo. Os ingleses que iam ao Globe aplaudir as peças de Shakespeare não tinham consciência de estar a praticar um «acto cultural», e os fracenses que riam às gargalhadas das comédias de Molière ter-se-iam rido muito mais se soubessem que essas comédias estavam destinadas a ser postas em cena, anos mais tarde, à custa de subsídios estatais, para deleite de gente empenhada em «adquirir cultura».
A cultura de um povo não pode medir-se apenas através dos «actos culturais conscientes» que pratica, mas também - e quem sabe se principalmente - através do carácter que imprime ao seu quotidiano, do que faz para se divertir, do que tem por necessário e por desnecessário, e dos hábitos que o levam a actuar desta ou daquela maneira, independentemente das regras de vivência que lhe são impostas seja a que título for.
Todos praticamos, por exemplo, um «acto de cultura inconsciente» várias vezes ao dia, sempre que comemos. «Inconsciente», porque não nos apercebemos, necessariamente, de que tudo o que se relaciona com o «acto de comer» é simultâneamente uma fonte e uma expressão de cultura, do horário das nossas refeições, aos pratos que escolhemos, passando pelos ingredientes que entram na sua confecção.
Comer, por outras palavras, não é, culturalmente, um acto avulso mas,antes pelo contrário, um acto culturalmente tão importante que se pode atribuir um conteúdo sociológico à célebre frase de Brillat Savarin: «Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és».
Isto, porque comemos, antes de mais, com a fé; depois com a memória e, por último, de acordo com um conjunto de mitos culturais que nada tem a ver com o paladar que temos e que julgamos ser o elemento determinante nas nossas opções culinárias.
O conceito que um povo tem do universo e da vida exprime-se, em grande parte, através da sua religião, e esta impõe-lhes normas de conduta que afectam profundamente o seu quotidiano.
Dado que o «acto de comer» faz parte integrante desse quotidiano - é o único sem o qual nenhum povo pode passar, seria impossível que ele não tivesse sido, desde muito cedo, objecto de regulamentação religiosa.
Para se compreender bem o vínculo alimentação/religião é preciso ter em mente que o «acto de comer», ainda que individual na sua fase final, assenta em relações sociais que o colocam numa situação de dependência em relação à colectividade. Quem come tem de escolher os seus alimentos dentre os que lhe são facultados pela colectividade, chegando mesmo ao ponto, em casos extremos, de estar sob alçada desta no que se refere às quantidades que come. Se a colectividade não dispuser de trigo, ele terá de comer pão de milho, e basta uma guerra para que tenha de se submeter a um racionamento imposto por ela, ainda que se oponha ao conflito.
O carácter colectivo do «acto de comer» talvez não seja imediatamente evidente, mas não deixa, por isso, de ser um dado concreto que está na raiz de inúmeras opções tidas por assentes em valores exclusivamente gastronómicos. Quem entra num restaurante, por exemplo, raras as vezes tem consciência de que a «ementa» que lhe é entregue foi criada em função do gosto do maior número possível de pessoas, isto é, da cultura da colectividade, e não do seu gosto pessoal, e quem aceita uma ementa está, assim, a integrar-se culturalmente na sua colectividade.
É por esta razão que o «acto de comer» se foi transformando, com o decorrer do tempo, num acto festivo que, sob a forma do «banquete», adquiriu a natureza de um autêntico ritual.
Foi no decorrer da última ceia que Cristo instituiu o sacramento da comunhão, associando-se, a si e ao cristianismo, a dois alimentos inconfundíveis - o pão e o vinho.
Cerca de seis séculos depois da última ceia, surgiu na área mediterrânica uma nova religião que se associou imediatamente ao «acto de comer», proibindo o consumo do álcool e, portanto, do vinho, aos seus adeptos.

Tem continuação...