terça-feira, setembro 29, 2009

COMIDA E CULTURA [2º PARTE]

Continuação daqui!
Cristãos, muçulmanos e judeus acabaram por se encontrar na Península Ibérica e precisamente porque viveram ao mesmo tempo, no mesmo espaço geográfico, tiveram de zelar pela sua «identificação».
Até por ser imprescindível, o «acto de comer» foi o primeiro, e quem sabe se o mais natural, dos processos a que recorrem para este efeito.
Inútil será, certamente, chamar a atenção para o facto de que esta escolha proporcionou, aos adeptos das três religiões, a possibilidade de se declararem diariamente,e mais do que uma vez por dia, fiéis às suas culturas, tanto a nível familiar como a nível das colectividades em que se encontravam politicamente integrados.
Que a indentificação entre a religião e o «acto de comer» foi tida por importantíssima é uma coisa que ninguém duvida.
Andrés Bernaldez, curador dos palácios reais, amigos de Cristóvão Colombo e autor de umas extensas Memorias del Reynado de los Reys Católicos, tem um texto esclarecedor sobre a questão:«Avéis de saber que las costumbres de la gente comúm de ellos antes de la Inquisición, ni mas ni menos eran que de los proprios hediondos judios; e esto causava la continua conversión que com ellos teniam. Asi eran tragones e comilitones, que nunca dexaran el comer a costumbre judaica de manjarejos e olletas de adafinas e manjerejos de cebollas e ajos refritos com aceite, e la carne guisavam com aceite, e lo echavan en lugar de tocino e de grossura, o por escusar el tocino; e el aceite com carne e cosas que guisam hacen muy mal oler el resuello, e asi sus casas e puertas hédan mal a aquellos manjarejos; e ellos mismo tenían al olor de los judios, por causa de los manjarejos e de no ser baptisados»
Para o cronista, como se vê, o judeu define-se no «acto de comer» e pelo «acto de comer», tal como o muçulmano se definia pelo cordeiro que sacrificava de cabeça voltada para Meca, em obediência ao seu parceiro ritual, e o cristão pelo uso de banha e toucinho.
O conde de Salazar, incumbido de fazer aplicar o decreto real de 1610, que expulsava os mouros de Espanha, não hesitou em fazer saber aos bispos que ser cristão era, essencialmente, comer toucinho, beber vinho e «hablar en cristiano»...
Manifestação cultural que é, o «acto de comer» reflecte, necessariamente, o mundo conceptual de cada colectividade e, quando este mundo se modifica, ainda que temporariamente,essa modificação temreflexos imediatos nele.
Um exemplo flagrante desta modificação é a influência que o puritanismo de Cromwell exerceu sobre os hábitos alimentares ingleses. Quando mais não seja porque as considerações sobre a má qualidade da cozinha britânica se tornaram proverbiais, mesmo nos países dotados de cozinhas inferiores à britânica, vale a pena comentar este caso de incontestável interesse histórico.
A convicção de que o passado se caracterizou por uma grande abundância de géneros alimentícios, por receitas magníficas e por um técnica culinária imensamente superior à parte do presente, faz parte integrante do património mítico de todas as colectividades. Trata-se de uma convicção que não tem qualquer fundamento histórico, mas como mais adiante se voltará a referi-la, o que interessa aqui registar é que este «passado» mítico nunca é racionalizado e nunca é definido em termos rigorosos.
Esta regra, tem uma excepção, já que o «passado mítico» dos ingleses é definível com algum rigor: os good old days britânicos cobrem o periodo que decorreu do ínicio do século XVI aos meados do século XVII ou, melhor ainda, o periodo que decorreu do inicio do reinado de Henrique VIIIà execução de Carlos I, data em que a época da abundância mítica cessa abruptadamente para dar lugar aos lean years, isto é,aos anos das vacas magrasm
Basta citar os nomes de Henrique VIII, da rainha Isabel e de Shakespeare e eventos como a vitória sobre a Espanha filipina, para se concluir que este foi um período invulgarmente dinâmico e pujante da história inglesa, mas o que interessa registar é que, durante este periodo, a Inglaterra separou-se da Igreja de Roma-- mais do que permissiva em matéria alimentar-- para abrir as portas a um puritanismo reformador que viria a atingir o apogeu durante o «reinado republicano» de Cromwell.
Sob o dominio dos puritanos, o rosto da inglaterra modificou-se radicalmente: o prazer da mesa adquiriu um carácter pecaminoso; a arte de cozinhar passou a estar associada aos «excessos» de Roma, e temperos como o alho, a cebola e o louro forma postos de parte por fazerem parte integrante da cozinha italiana.
Em meia dúzia de anos, a cozinha inglesa, rica e vigorosa como é evidente a quem conheça o receituário de Alexander Neckham e o célebre Book of Cury do cozinheiro de Eduardo III, definhou de tal forma que se tornou irreconhecível.
Daí a distinção que perdura na memória do povo, entre o passado de abundância que antecedeu o puritanismo de Cromwell e a pobreza que se lhe seguiu.
Referindo-se a esta quebra súbita de uma tradição já secular, um historiador comentou, há cerca de dez anos «É dificil formular um juízo rigoroso sobre a influência exercida pelo puritanismo na cozinha inglesa, mas é revelador que, por causa dele, os folguedos e as festas, incluindo as natalícias, tenham sido abandonadas, e que o uso das especiarias e o consumo do vinho tenham sido desencorajadas...»
Valerá a pena prosseguir para se entender que nos sentamos sempre à mesa com os conceitos do mundo e da vida e com as nossas religiões?
Continua....