Continuação daqui, daqui e daqui...
De Espanha, seguiu para o Vaticano, donde o Papa mandou os exemplares que recebera a Philippe de Sivry, que, por sua vez, os fez chegar às mãos do botânico François-Charles de Lescluse. Este, actuando de acordo com os costumes dos cientistas da época, desenhou alguns tubérculos, que identificou com uma legenda histórica: « Petite trouffe (taratouffi) reçue de Sivry, à Vienne, le 26 Janvier 1588. Papa des Péruviens de Pierre Cieça.»
Admite-se que uma outra espécie de batata, esta oriunda da Vírginia, tenha chegado a Inglaterra, em 1585, pela mão de Sir Walter Raleigh, mas a questão é controversa e, de qualquer forma, a sua chegada não altera a sequência dos acontecimentos. O importante é registar que a batata chegou à Europa no final do século XVI e que, apesar de ter sido quase imediatamente estudada e plantada, só começou a entrar nas ementas europeias dois séculos mais tarde.
Em Portugal, por exemplo, só começou a ser plantada no século XVII e, mesmo assim unicamente para alimentação de animais. Os receituários de Domingos Rodrigues e de Lucas Rigaud, que foram os primeiros publicados em língua portuguesa, revelam que este tubérculo era praticamente desconhecido em Portugal, onde o seu uso, na alimentação humana, só se generalizou no século XIX.
O que aconteceu foi que a Europa recusou inicialmente, e só muito lentamente foi aceitando, um alimento não referenciado na sua memória, dado que não conhecia outros que lhe fossem semelhantes e que lhe permitissem assimilá-lo sem cometer uma violência cultural.
Com o feijão, porém, já as coisas se passaram de outra forma. Trazido da América por Cristóvão Colombo em 1493, no regresso da sua segunda viagem ao novo continente, foi baptizado pelo francês Oliver de Serre com o nome de phasiols, em 1594, data em que já começara a ser plantado e utilizado em vários pontos do continente europeu. Para se fazer uma ideia da rapidez com que essa novidade americana se divulgou bastará, certamente, referir que o lexicógrafo inglês Ronald Cotgrave mencionou nada mais nada menos do que dezassete variedades de feijão num dicionário que publicou em 1611, e que a «novidade» já figurava nas listas de preços das feiras francesas nos meados do século XVII.
O contraste entre a lentidão com a Europa aceitou a batata e a rapidez com que aceitou o feijão é evidente, e tem uma explicação bem simples: no primeiro caso, a memória do europeu não dispunha de elementos que lhe permitissem compará-la e, no segundo, dispunha de dois alimentos que lhe permitiam fazê-lo sem violentações: as castanhas e as favas que, frescas ou secas, estavam na raiz da alimentação medieval europeia. Isto, para não falarmos do caso especial dos países que tinham estado em contacto directo com os invasores africanos, já que estes dispunham de outra referência preciosa: o grão, que se lhe assemelha, até no que se refere à sua preparação culinária...
O«acto de comer» está, assim, ligado à memória por um vínculo de dependência: o homem aceita o que a sua memória reconhece, ou pode referenciar, e repudia tudo o que ela desconhece, ou não pode referenciar por falta de elementos.
Cada época tem os seus mitos, as suas crenças--religiosas ou científicas-- e as suas «verdades absolutas e definitivas», sejam elas quais forem e durem o que durarem.
Muitos dos mitos relacionados com o «acto de comer» têm uma origem histórica conhecida, alguns enraízam-se numa praxis histórica entendível, e outros exprimem, em termos de «medo», perigos ainda não explicados convenientemente em termos científicos.
Quando, no século IV a. C., Pintágoras classificou as favas de «doentias», a sua intenção era clara: pôr os seus contemporâneos de sobreaviso contra a doença, então inexplicável e incurável, que hoje designamos por «favismo»--doença que se tem por hereditária, que raras vezes se encontra fora da zona cultural da bacia mediterrânica e que era, ao que se julga, mais frequente no tempo de Pitágoras do que actualmente. É certo que o mito de que Pitágoras foi eco não afectou nos hábitos alimentares europeus, mas é igualmente certo que ele ainda se mantém vivo em certos pontos da Itália Meridional.
Ainda hoje se diz que o marisco não deve ser consumido nos meses «sem r», isto é em Maio, Junho, Julho e Agosto, apesar de ninguém saber em que mês é que saiu do mar o marisco adquirido nos estabelecimentos de venda de peixe congelado e de os novos métodos de conservação dos alimentos terem alterado completamente muitas das regras sanitárias do passado.
São tantos os exemplos que se poderia dar destes mitos que não vale a pena prosseguir-- basta dizer que eles fazem parte integrante do património cultural de todas as colectividades.
Nenhum destes «mitos menores», porém, tem grande importância para o estudo da essência e da evolução do «acto de comer»--os que têm. efectivamente, importância são os «mitos maiores» em que se alicerçam muitos dos erros conceituais mais comuns nesta matéria.
Destes, um dos mais correntes e graves é o que leva um número infinito de pessoas a associar o «passado» com «abundância» e o «presente» com «a escassez».
Trata-se de um mito que não tem o menor fundamento histórico, mesmo no caso dos países em que a sua origem é conhecida, como é o caso, já atrás referido, da Inglaterra. Os estudos levados a cabo no decorrer das últimas décadas-- estudos esses cada vez mais frequentes e profundos--não se limitam a desmenti-lo: revelam que a verdade está no pólo oposto e que a Europa viveu em regime de escassez até há muitos poucos anos.
O pão, as favas, as castanhas e os nabos foram, durante séculos, a base da alimentação de vastas camadas populacionais espalhadas por aldeias e lugarejos dominados pela doença e pela escassez alimentar. O europeu, periodicamente reduzido à fome por cheias e secas que não sabia, nem podia, controlar; vitimado por guerras e incursões que pareciam ter-se aliado à Natureza para lhe destruir as searas e espoliado, de quando em quando, do pouco que conseguia amealhar, só muito recentemente se libertou da fome e miséria.
Os estudos levados a cabo por R.J. Bernard em França levam a crer que a vida dos camponeses do século XVIII se caracterizou pela má nutrição--uma má nutrição endémica,interrompida, muito de quando em quando, por festins pantagruélicos e por longos períodos em que a fome dizimava as aldeias...
Continua...