quarta-feira, setembro 30, 2009

COMIDA E CULTURA [ 3º PARTE ]

Continuação daqui e daqui...

Se o homem não tivesse a possibilidade de recordar o passado e de o relacionar com o presente, não haveria cultura, e as sociedades não teriam evoluído. Memória e cultura quase se confundem e, como o «acto de comer» é essencialmente cultural, não espanta que assente, em grande parte, em dados retidos na memória.

Um dado obtido através dos sentidos, seja um cheiro, uma tonalidade cromática, o paladar de um alimento, ou um som, evoca imediatamente uma época do passado, e o seu grau de agradabelidade ou de desagradabilidade depende do posicionamento afectivo de cada um face à época ou ao acontecimento evocado. O cheiro a estrume, a maçãs, ou a terra molhada será agradável a quem passou a mocidade no campo, e neutro, ou, até desagradável, a quem passou entalado entres os muros de uma cidade.

Do plano individual pode passar-se ao colectivo porque a memória do indivíduo vincula-o aos valores culturais da sua colectividade, mesmo que ele não se aperceba disso, e está na raiz de muitas reacções e opções que se julga,erradamente, serem voluntários e livres.

Um emigrante italiano, por exemplo, será atraido pelo cheiro exalado pelos restaurantes da Little Italy, mas esse mesmo cheiro repelirá um emigrante sueco de passagem na área. Para se entender bem a importância do papel desempenhado pela memória no «acto de comer» há, porém, que relacioná-la com outros factores e, muito especialmente, com função protectora que cada colectividade exerce em relação aos indivíduos que dela fazem parte.

A integração cultural é, antes de mais, um factor de segurança. Integrado na sua colectividade, o indivíduo sente-se defendido e seguro: conhece as normas de conduta, sabe quais são as regras do jogo, possui uma escala de valores que lhe não permite correr riscos senão dentro de limites previamente conhecidos e não está, por tudo isto, em perigo de ser abandonado , desprezado e condenado à solidão.

Forçado a enfrentar o desconhecido, é uma cultura assente em regras e valores alheios aos da sua, o homem sente-se perdido e faz tudo o que está ao seu alcance para se reencontrar, isto é, para descobrir, num mundo adverso, regras e valores que lhe sejam familiares e que ponham termo à solidão.

Os emigrantes--trata-se de um exemplo perfeito--criam imediatamente restaurantes que os devolvem ao seu ventre materno cultural, proporcionando-lhe os pratos e os vinhos da sua infância, e educam os filhos no culto das suas tradições culinárias, na convicção instintiva de que estes se manterão fiéis às suas raizes enquanto se mantiverem fiéis àquilo em que estas melhor se concretizam: a cozinha da mãe-pátria.


Nada disto tem a ver com a qualidade gastronómica intrínseca dos pratos que comem, até porque os emigrantes, normalmente oriundos de regiões pobres e atrasadas, não guardam na memória elementos que lhe permitam formular juízos de valor em matéria de gastronomia. Põe-se o mesmo problema em relação às diversas classes sociais que, para este efeito, constituem autênticas colectividades com valores culturais comuns, embora, no caso destas, a emigração tenha de ser entendida de outra forma: emigra, para este efeito, quem passa de uma classe para a outra, e «ascende»--usamos a palavra no sentido usual--quem passa para uma classe económica e culturalmente mais evoluída. Quem «ascende» é projectado para um mundo desconhecido, cuja escala de valores lhe é alheia, e reage sempre da mesma forma: ou se refugia no culto da sua escala original, inventando formas de racionalizar a sua inadaptação face à colectividade em que acaba de entrar, ou esconder a sua inadaptação, aceitando em termos absurdamente entusiásticos a escala de valores da sua nova colectividade.


No primeiro caso, defende desesperadamente a cozinha «simples»,«pura», e não requintada que conhece desde criança, e em relação à qual se pode pronunciar sem correr o risco de se revelar ignorante. Na sequência lógica desta atitude, repudia a cozinha requintada, que tem por «mistificada» e em relação à qual se sente profundamente inseguro.

No segundo caso, defende os valores gastronómicos da classe a que ascendeu em termos tão entusiásticos que acaba por ficar «mais papista do que o Papa», sem se aperceber de que a sua adesão incondicional é tão reveladora aos olhos dos entendidos como é o repúdio, igualmente incondicional, dos que optam pela primeira atitude: gabará, por exemplo, uma «sopa de pacote» se lhe afirmarem tratar-se de uma vichvssoise, e beberá, com demostrações de agrado, um vinho feito a martelo que lhe garantem tratar-se de um excelente Bordéus.

Em termos muito simples, pode dizer-se que o homem tende a repudiar inicialmente, e só aceitar muito lentamente, tudo o que não está referenciado na sua memória e que, em contrapartida, aceita com relativa rapidez tudo o que nela está referenciado.

Um exemplo concreto contribuirá para a compreensão deste fenómeno--o caso da batata.

Enviado para a Europa por Pedro de Cieza de León, companheiro de Pizarro, este tubérculo teve uma vida acidentada até ser aceite em todos os países da cristandade.
Continua...