sexta-feira, outubro 02, 2009

COMIDA E CULTURA [5º PARTE]

Continuação daqui, daqui, daqui e daqui...

Até a ideia que se tem da riqueza rural inerente à matança do porco--ideia em grande parte criada por textos escritos por citadinos empenhados em romantizar juventudes rurais já distantes no tempo--cedeu perante a investigação histórica. Hermandinquer demonstrou que poucas famílias rurais dispunham de meios para criar um porco, e a análise dos inventários franceses leva à conclusão de que nenhum dos mitos modernos sobre riqueza rural francesa anterior à Revolução de 1789 tem o menor fundamento.

O que se diz da França pode dizer-se dos restantes países europeus, mesmo dos que temos por ricos--a Dinamarca, por exemplo, só por volta de 1870 se libertou inteiramente da fome...

Lado a lado com este muito subsiste outro, este medido em quilómetros e não em anos, de acordo com o qual as tradições culinárias do passado se mantêm vivas numa distante e mítica província em que se refugiam admiráveis cozinheiras já idosas, e em que se preservam intactas espantosas e antiquíssimas receitas desconhecidas nas grandes cidades.

Como é que estes mitos subsistem numa época em que a história da alimentação e da culinária chegou à universidade e em que número crescente de pessoas tem, sem sair do seu bairro, um número quase ilimitado de opções culinárias é, sem dúvida alguma, difícil de entender.

Dificíl, mas não impossível.

Antes de mais, é necessário ter em linha de conta que estes mitos criados e alimentados por gente oriunda da província, que veio envelhecer à cidade cultivando recordações que o passar dos anos foi dourando e mitificando. A glória de correr à desfilada ao longo da ribeira acaba por se confundir com o bacalhau com todos comido depois da Missa do Galo, e a vida despreocupada da juventude acaba por casar, na memória desta gente, com o leite-creme dos dias festivos. Se a mãe era meiga e protectora e se os dias decorriam sem problemas, a comida tinha, necessariamente, de ser deliciosa...

Quem fala, por outro lado, do que comia em criança refere-se quase sempre, senão sempre, à comida dos dias festivos, esquecendo o naco de pão e a sopa de «embuchar» do quotidiano não romantizado...

Não vale a pena repetir o que ficou dito sobre a «emigração social», embora tudo o que se disse sobre este assunto tenha uma grande importância para o estudo do clima social em que estes mitos se desenvolvem.

Vale a pena, no entanto, referir uma outra questão raras vezes abordada pelos que cultivam mitos culinários: a questão de saber se a cozinha dita tradicional o é efectivamente.

Das sete sopas classificadas de tradicionais de Entre Douro e Minho numa recente e notável obra dedicada à cozinha tradicional portuguesa, três contêm batatas e duas arroz--géneros que só se popularizaram, em Portugal, no decorrer do século XIX.

Independentemente da questão, que tanta tinta tem feito correr, da origem da maionese, tem-se por certo que este molho fez a sua aparição na Península em 1795, ou, mais precisamente, no banquete que nessa data o célebre D. Manuel Godoy deu, em Madrid, para celebrar o facto de Carlos IV lhe ter concedido o título de Príncipe da Paz. Não há elementos que permitam determinar em que data é que este molho chegou ao Porto. Teria sido levado de Lisboa? Teria chegado pela mão dos invasores franceses? O que se sabe é que a francesíssima maionese, associada ao puré de tubérculo ainda mal conhecida, que ainda não requerera nacionalidade portuguesa--a batata--deu origem a uma iguaria que alguns não hesitam em classificar de «tradicional»: o bacalhau à Zé do Pipo...

Na sequência desta maneira de actuar, acabamos por incluir o hamburguer na lista dos pratos «tradicionais» portugueses... O problema não se põe--há que dizê-lo desde já--unicamente em relação a Portugal. Como nota, num comentário, a um tempo divertido e irónico, a notável historiadora do evoluir culinário europeu Barbara Ketcham Wheaton, referindo-se ao «tradicionalíssimo» cassoulet de Toulouse e Carcassonne,«il est fort instructive de voir ainsi rappeler qu`un plat dont les ingrédients tradionnels suscitent aujourd`hui des polémiques passionnées...est somme tout relativement récent, tout de moins dans sa forme actuelle...»

É que não existe uma cozinha regional imutável-- tudo, da batata ao espargo, contribuiu o enriquecimento das cozinhas regionais, que não teriam resistido ao tempo se contassem apenas com os ingredientes e os processos conhecidos das «simpáticas e idosas» cozinheiras da tal província mítica atrás referida.

Esta evolução não se processa, porém, apenas em função dos novos ingredientes e processos que vão surgindo, processa-se, também, em função de um«aburguesamento» que parece fazer parte integrante do evoluir social. Para se compreender este «aburguesamento» bastará comparar as receitas de cozinha alentejana contidas em qualquer livro de cozinha regional com as colhidas por Aníbal F. Alves nas memórias de alentejanos que nunca tinham ouvido falar de cozinha regional. Estes depoimentos vêm publicados na Cozinha dos Ganhões, um livro cujo o valor cultural parece ter passado despercebido.

Por último há que referir, ainda neste capítulo, a deturpação que é feita, todos os dias e em toda a parte, dos chamados pratos típicos das diversas regiões gastrómicas. Esta deturpação assenta na necessidade que os chefes têm de adaptar pratos vinculados a uma cultura aos paladares de outras culturas em cujas memórias eles não estão referenciados. O fenómeno surgiu com o aparecimento do chamado «turismo de massas», responsável pela deslocação anual de milhões de pessoas de baixo nível cultural, que se sentem atraídas pelo carácter aparentemente exótico das cozinhas dos países que visitam, mas que só aceitam iguarias que não violem os seus hábitos alimentares.

Chefes, gerentes e técnicos, culturalmente incompetentes mas de competência «técnica» comprovada por escolas mais dadas ao marketing do que à conservação de valores culturais, estão a destruir, diariamente, as cozinhas dos países que tomam o turismo por uma fonte inesgotável de rendimento

Continua...