domingo, maio 19, 2013

A HISTÓRIA DO CAFÉ [PARTE 3 ]

            (Imagem retirada da net)
Continuando com « história do café» já passei a parte 1 e a parte 2, agora continuando para a parte 3 e final. Espero que tenham gostado assim como eu.

As mãos que dão de comer...

Argelia é cozinheira. A sua vida decorre numa paz absoluta. Os seus dias alimentam-se do verde da terra e da alegria que proporciona aos trabalhadores a quem, todos os dias, dá de comer na sua cozinha. Trabalha de segunda a sexta-feira e descansa sábados e domingos. Prepara a dispensa semanalmente, depois de saber quantas pessoas irão trabalhar na plantação e, consequência, deliciar-se com os seus pratos. É uma mulher alta e muito bonita, de cabelo preto. Vivi numa casa branca, com portas e janelas pintadas de vermelho e telhados de telha. Está rodeada de flores de todas as cores e, muito perto da casa, crescem bananeiras, pimenteiros e limoeiros «para as limonadas». Vêem-se montes de lanha para a cozinha e sente-se muito amor. Reparo numa cruz de *guádua com mais de dois metros de altura, mas que não tenho coragem de perguntar o que significava. Na sua cozinha encontram-se panelas limpas, brilhantes como espelhos e penduradas nas paredes para, mais dia menos dia, voltarem a ser usadas.
*Espécie de bambu muito alto e grosso.
Nos fogões há sempre tachos fumegantes, arroz e feijão-encarnado preparados diariamente, pois não podem faltar no menu nocturno. Argelia conversa connosco encostada ao parapeito da janela da cozinha, juntamente com a filha. De repente, sai de casa e oferece-nos um sumo de goiaba colhida no jardim, doce e refrescante, óptimo depois de uma caminhada árdua pelos campos à procura dos locais mais apropriados para fotografar. O marido, sentado em silêncio a um lado da mesa, faz-lhe companhia por estar convalescente, e a filha, que a ajuda todas as tardes, não se separa dela um único segundo. Argelia cozinha diariamente para setenta trabalhadores com bom apetite e um horário preciso. Ao amanhecer, oferece-lhes um *tinto aromático, quente e substancial, para enfrentar o início do dia e trabalho. Algumas horas mais tarde, quando ainda está frio, chega a hora do pequeno-almoço. Põe água a ferver, prepara chocolate espesso e suave e vai cozinhando as arepas de milho acabado de moer, para as servir quentes e douradas. Com esta pequena refeição, que dá força aos trabalhadores para continuarem a colher café até ao meio-dia, termina a primeira etapa matutina de Argelia.
*Nome que se dá na Colômbia ao café puro sem leite.
Quando o Sol está no zénite e a temperatura aquece, regressam todos à casa onde os guarda um almoço acabado de preparar. O menu varia entre guisado com mandioca ou banana-pão, sopa de arroz, «seco» com massa e carne, e outros pratos reconfortantes e nutritivos, sempre do agrado dos trabalhadores. Esses pratos fornecem-lhes energia, mas também reconforto, por terem partilhado com Argelia um toque de vida tão especial como os seus cozinhados. O sol põe-se, o dia de trabalho termina e os comensais aproximam-se novamente, agora para jantarem. É também ali que se reúnem, mais tarde, para um merecido descanso, para jogarem à malha ou às cartas, ou, simplesmente, para conversarem e comerem mais qualquer coisa antes de uma curta noite de sono: às cinco e meia da manhã já estão a deleitarem-se novamente com o tinto da alvorada.

A família impera...

Conheci três cunhadas que partilham a mesma casa e só às sextas-feiras à tarde, quando o trabalho acaba, podem contar com a companhia dos maridos. As crianças mais pequenas brincam alegremente, as filhas mais velhas escondem-se, alguns jogam à malha, num ambiente divertido e barulhento, e outros preparam-se para ir ao futebol. Para chegarem ao campo, situado a umas centenas de metros da casa, têm de descer a montanha, coberta de cafezeiros; junto ao campo corre um rio que, ali de cima, mal se avista. Alicia, tal como Pedro, o seu marido, levanta-se às seis horas da manhã, dá o pequeno-almoço às crianças, toma banho, bebe um tinto e sai para o trabalho. O campo e a natureza chamam-na e dão-lhe vida. Há seis anos que trabalha na colheita do café: «Nos dias piores colho entre cinquenta a sessenta quilos», diz. Sai à mesma hora que os outros trabalhadores. São poucas as mulheres a realizar aquela tarefa, mas sérias e respeitadas. Trabalham a par dos homens e são tratadas com igualdade. Como qualquer outra mãe que trabalhe, quando a jornada termina volta para casa, onde a pequena Daniela a recebe de braços abertos. À noite descansa um pouco. Assiste a um filme ou um episódio de uma telenovela e senta-se a desfrutar da paisagem na companhia da família. «Canto, danço e vou ao futebol com os miúdos. Às vezes jogamos futebol, aqui no pátio. Para mim, o importante é manter-me activa», afirma com um sorriso. A Paula e a Cristina ficam em casa a preparar a comida para o resto do grupo. Pratos especiais, elaborados pelas mãos de mulheres do campo: às segundas-feiras, pequeno-almoço de arroz com ovos, um guisado ao almoço, e assim sucessivamente...Perto da pequena casa branca há uma capoeira com galinhas gordas e formosas, que, certamente, não tardarão a fazer parte de um desses menus. Em constante correria, as crianças serpenteiam por entre as pernas das mães, sem perceberem muito bem o que querem aquelas estranhas, de máquinas fotográfica e gravador em punho. Sente-se o cair da tarde e, em especial, a chegada do fim-de-semana, que une a família no reconforto do lar e no desejo de partilhar bons momentos. Quando ao jogo da malha, explicam-mo assim: «Aqui parada, no local onde estou, agarro numa malha [uma roda metálica com cerca de 10 cm de diâmetro e 650 g de peso] e lanço-a de maneira a faze-la "queimar a mecha", ou seja, bater num círculo marcado com pólvora, o que provoca um som característico. Ganha a pessoa que conseguir "queimar" um maior número de mechas.» Ficámos a ver o jogo e acabámos por nos entusiasmar tanto como os participantes. Pedro, o marido de Alicia, aproximou-se de nós e contou-nos como tinha chegado ali, há oito anos, e como se sentia bem: «Daqui ninguém me tira. O que mais me agrada é ter um trabalho estável, que não me obriga a andar de quinta em quinta. Aqui, divertimo-nos a jogar à malha, a ouvir música, a cantar e a viver no campo.»

O alimentador...

Diego é o alimentador daquela área da plantação. Ao contrário do que a designação da sua função possa sugerir, não é a ele que cabe preparar os alimentos. Em contrapartida, é dele que depende o suave, enérgico e cálido tinto fresco madruga. adoro o título de «alimentador», pois, dada a confusão a que induz, confere uma especial importância ao café, colocando-o no local do «pão nosso de cada dia». Diego, também ele entusiasta do jogo da malha, é magro, de rosto alongado e cabelo castanho. Não percebe o que é que eu e a minha filha fazemos naquelas terras altas e longínquas, e porque queremos saber do seu ofício. Explico-lhe que nos interessa conhecer as pessoas que se mantiveram no campo, a trabalhar e a desfrutar das suas vantagens, enquanto nós vivemos no bulício da cidade, afastadas da natureza e do complexo silêncio. «Ah!», exclama. «Se isso fizer com que nos tornemos mais conhecidos e haja mais pessoas a quererem trabalhar no café...» Foi assim que iniciámos a conversa em que nos demos a conhecer mutuamente. Diego tem a seu cargo os dois tintos diários: o que abre os olhos e o coração dos seus trabalhadores de manhã bem cedo e o que permite terminar com satisfação essa grande jornada, cheia de cores e trabalho árduo. Também lhes oferece sumos de fruta, para os ajudar a refrescar-se à ida para casa. Tem a responsabilidade de verificar se todos estão bem, nos campos e ao recolherem aos acampamentos. Observa atentamente o que se passa, indaga, acompanha os trabalhadores nos seus labores e está sempre presente, para lhes fornecer o que precisam. É essa a sua forma de contribuir para o bom resultado das suas tarefas, árduas e meticulosas. Diego contabiliza o número de trabalhadores, reparte o trabalho e avalia a quantidade de café que conseguirão colher. Distribui então os sacos, que, ao final da tarde, deverão estar cheios de fruto maduro e identificados com a respectiva numeração. Na plantação, entrega aos trabalhadores sacos e números para que, no final da jornada, o café colhido seja marcado, separado e arrecadado. Diego também tem a incumbência de fornecer às cozinheiras todos os víveres necessários para a preparação das refeições destinadas a alimentar a sua gente. Cuidar dos arbustos, arrancar as ervas daninhas e vigiar as sementeiras são outras das tarefas que lhe cabem. Como ele próprio diz, o seu trabalho é um conjunto de ofícios: faz um pouco de tudo e tudo está nas mãos. O trabalho no campo termina na sexta-feira à tarde, mas no sábado, dia de pagamento, vai até à cidade com os trabalhadores, para que todos recebam o que lhes é devido: assim termina a sua semana laboral.
Fim...

____É mais sensual uma mulher vestida do que uma mulher despida. A sensualidade é o intervalo entre a luva e o começo da manga.____

António Lobo Antunes