sábado, outubro 03, 2009

COMIDA E CULTURA [6º PARTE]

Continuação daqui, daqui, daqui, daqui e daqui...

O estudo das cozinhas regionais europeias levanta problemas complexos nem sempre entendidos pelos estudiosos de culinária.

Para começar, é legítimo pôr a questão de saber em que medida é que se pode falar de «cozinhas nacionais», fazendo coincidir regiões culinárias com regiões políticas.

Ninguém põe em causa, por exemplo, que a cozinha normanda faz parte da cozinha francesa, mas quantos se recordarão de que a Normandia ainda fazia parte da coroa inglesa quando Henrique IV morreu e que, por isso, num tratado culinário hipoteticamente escrito em 1422, esta cozinha seria legitimamente classificada de inglesa?

O facto, porém, é que, para a nossa rainha D. Filipa de Lencastre, tanto a lampreia como o entrecôte à bordalesa eram iguarias inglesas...Pela mesma ordem de ideias, a quesaílla e a merendera de «Los Llanos de Olivenza» eram queijos portugueses em 1656...

O número das regiões culturais que mudaram de país, ou que foram divididas por fronteiras políticas, é extenso--a Catalunha e os países bascos, que se integram no nosso mundo peninsular, são apenas duas das muitas regiões culturais europeias que nele figuram.

Recorda-se, para ultimar o assunto, que ainda há bem poucos anos os livros de cozinha portuguesa incluíam receitas de Angola e de Moçambique...

A reacção contra a tendência para fazer coincidir as divisões culturais e gastronómicas com as divisões políticas e administrativas começou em 1958, com a publicação do clássico de Waverly Roat, que lhe mereceu o oficialato da Legião de Honra, e cujo estudo atento é unanimemente tido por essencial a quem se interessa por questões relacionadas com a gastronomia. Waverley dividiu a França em três zonas: a da manteiga, que está na base da haute cuisine, a da banha e a do azeite.

Em 1981, Anne Willan, cujo French Regional Cooking é considerado o melhor receituário regional francês das últimas décadas, optou pela adopção da divisão administrativa pré-napoleónico, afirmando-a mais condizente com a realidade cultural e gastronómica da França. Têm surgido outros critérios, embora nenhum se tenha sobreposto ao de Root, que tem, sobre todos, a vantagem de permitir, pelo menos teoricamente, uma análise comparativa e de conjunto de todas as cozinhas regionais europeias. Classificámos esta possibilidade de teórica porque ela ainda não é, efectivamente, possível: não existem os estudos, nem se conhecem os documentos, necessários à desejada, e desejável, visão de conjunto a que nos referimos.

Para se compreender esta lacuna, basta ter em mente que a história da gastronomia é recente. Começou, por dizer-se, em 1782, com a publicação da obra de Pierre-Jean Baptiste, Le Grand d`Aussy, a que se seguiu L`Historiographie de la Table, de Verdot. Posteriormente, dedicaram-se ao assunto Armand Lebault, Bertrane Guégan, Raymond Oliver, e Anne Willan, notabilizando-se Le Cuisinier Français, de Guégan, que abriu as portas aos estudos, agora mais rigorosos dos anos 50.

Foi só, porém, a partir dos estudos publicados nos Annales por Marc Bloch e por Lucien Febvre que a história da alimentação e da gastronomia adquiriu um carácter científico, destacando-se, neste campo e a partir dessa data, Emmanuel Le Roy Ladurie, Ernest Labrousse, Fernand Braudel e Barbara K. Wheaton, para apenas citarmos os mais conhecidos dos muitos estudiosos dedicados a este ramo da história que provoca, dia a dia, mais interesse em todos os países. Se existem, porém, documentos que permitem chegar a conclusões válidas sobre o evoluir da chamada haute cuisine, esses elementos escasseiam no que se refere tanto à alimentação das classes populares como à evolução da cozinha regional. Como afirma B. K. Wheaton,«l`étude des cuisines régionales n`est pas encore suffisament avancée pour pouvoir porter un regard d`ensemble sur leur histoire».

O LIVRO DE

MARIA ODETE CORTES VALENTE...

Não parece necessário acrescentar nada ao que foi dito para se compreender até que ponto a cozinha regional é importante para a identificação cultural de uma colectividade, e para que ela subsista e sobreviva num mundo em que os grandes tendem a esmagar culturalmente, os pequenos. Terminadas as românticas veleidades que nos levavam, ainda à bem pouco tempo, a encher as paredes das nossas salas de aulas com mapas em que se afirmava «Portugal não é um país pequeno», resta-nos encarar o mundo com a dimensão que realmente temos-- a dimensão de um país pequeno e periférico dotado de uma fé antiga e profunda na sua capacidade de sobreviver.

Não basta, porém, que tenhamos fé-- temos de fomentar a diferença, isto é, temos que cultivar tudo o que nos diferencia dos outros, para que os outros não nos tornem iguais a eles, já que é essa a forma contemporânea de os grandes conquistarem os pequenos.

A cozinha regional que temos-- não interessa, aqui, discutir o problema do seu valor intrínseco-- é uma expressão real e concreta da nossa vivência e da nossa cultura, e é, por isso mesmo, um dos elementos de diferenciação que temos de cultivar para mantermos a nossa identidade.

Este livro vem contribuir para a sua redescoberta, para a sua conservação e para a sua divulgação, colocando nas mãos de todos um manual prático e simples da arte de «comer à portuguesa», isto é, da arte de comer de acordo com o paladar que criámos ao longo da nossa história.

Trata-se de um manual que terá de figurar nas bibliotecas dos responsáveis pelos nossos hotéis e restaurantes, gente que, tendo estudado no país do relógio de cuco, está firmemente convencida de que somos cucos...Trata-se de um livro reformulado e ampliado. Editado pela primeira vez em 1962, levou o prazer de comer a muitas casas, cumprindo o objectivo da sua autora, que, apesar disso, não se deu por satisfeita. Com o auxílio de amigos e familiares, continuou a reunir receitas oriundas de todos os pontos do país, e o resultado está à vista: um reportório regional completíssimo que vai melhorar o quotidiano de milhares de portugueses. Trata-se, para além disso, de uma obra escrita numa linguagem simples e despretensiosa, que retoma, neste campo, a tradição dos receituários tradicionais.

Por último, vale a pena mencionar que Maria Odette Cortes Valente, grande cozinheira e crítica feroz de tudo o que lhe sai das mãos, provou todas as receitas que constam deste seu livro, o que é, sem dúvida alguma, uma garantia da sua qualidade...

FIM