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sábado, maio 11, 2013

A HISTÓRIA DO CAFÉ [PARTE 1]


                          (Imagem retirada na net)
Estava eu a fazer uma receita do meu livro «Paixão pelo Café» quando me recordei, no dia que comprei o livro, antes de fazer qualquer receita li a Introdução que é «A história do café», gostei e muito, então passado este tempo pensei em partilhar com os meus seguidores. Vou partilhar em 3 faces, pois é bastante extenso, não quero maçar. Quem gostar, óptimo, quem não interessar, já sabem, mandam para canto, ok?

A história do café começa com uma lenda curiosa, que situa a sua descoberta na Abissínia, a actual Etiópia. A palavra café deriva da cidade abissínia de Kaffa, onde teve a sua origem. Lendas do Médio Oriente falam de uma bebida escura que inspira amor e lealdade, cura doenças, revigora as forças e permite longas noites de oração e meditação.
 
Um dos mitos sobre o início do consumo humano deste grão conta que o pastor chamado Kaldi, cansado e com um rebanho esfomeado, deixou as suas cabras saciarem-se do fruto vermelho de uns arbustos silvestres parecidos com o loureiro, hoje conhecidos como «café Arábica». Inquieto com a alteração de comportamento do rebanho, que pouco tempo depois de consumirem as bagas dava mostras de aguentar o sol escaldante sem sentir o mínimo cansaço, decidiu provar também aquela planta mágica. Foi dessa forma que descobriu o poder enérgico daquelas bagas, que surtiram nele um efeito tão poderoso como no rebanho.

O mesmo aconteceu a um certo monge que, no caminho para o convento, colheu alguns desses frutos e os secou para os poder transportar mais facilmente para o convento. Aí, ofereceu-os como uma pequena ajuda para as orações nocturnas. Começou assim a difundir-se o consumo desta bebida nos mosteiros da zona e, ao mesmo tempo, nas mesquitas e áreas muçulmanas onde o consumo de álcool não era permitido.
 
Em determinada altura, o café em grão viajou da Etiópia para a Península Arábida do lémen, onde começou a ser cultivado. Foi aí que a variedade de café Arábica adquiriu o seu nome. O café foi exportado pela primeira vez de Moca, um dos portos deste país árabe cujo costa se encontra na confluência do mar Vermelho com o golfo de Áden. No século XVI foi levado para a Turquia e para o resto do Império Otomano. Ali se começou a cozinhar ou a torrar em fogueiras, onde adquiriu um aroma e cor maravilhosos, que se espalharam pelos ares das terras muçulmanas, transportando segredos de saúde, força e virilidade. Nessa altura, já se bebia um café semelhante ao que se consome hoje a nível mundial. Dali continuou a sua expansão até à Pérsia, ao Egipto e à Síria.
  
No século XVI, o café atravessou as terras do Médio Oriente em direcção a norte e chegou à Europa através dos comerciantes venezianos. A elite europeia recebeu o grão de café torrado, que não se podia cultivar, como um presente digno da realeza. Inicialmente, tentou-se guardar o mistério desse grão, quase sagrado, como sinal de superioridade e força, já que as suas propriedades curativas se tornaram muito atraentes para as altas esferas políticas e religiosas da Europa. Com o apoio da Igreja Católica e, mais tarde, com a bênção do papa Clemente VIII, a bebida difundiu-se rapidamente no continente europeu, mas devido ao seu preço elevado, o seu consumo começou por estar limitado às esferas abastadas e poderosas, que incluíram estudiosos, artistas, intelectuais e eruditos. Em finais do século XVII impõe-se por toda a Europa a moda das «cafetarias» ou «cafés» e, dessa forma, o café adquiriu uma cotação de bom serviço e de boas vindas.
  
Atribui-se aos Holandeses o cultivo do café e a introdução da planta nas suas colónias asiáticas do Ceilão e da Indonésia. A França e a Inglaterra terão feito o mesmo nas suas colónias. Diz-se que foi através das suas plantações em Java que os Holandeses introduziram a cultura do café nas suas colónias das Caraíbas, de onde passou para o Brasil e dali para a Venezuela e para a Colômbia.
  
Também está escrito que um capitão da infantaria francesa transportou num navio quinze pés de café dos quais só um sobreviveu ao acidentado trajecto. Nessa pequena planta poderá ter origem todo o café hoje cultivado na América do Sul e Central: em mais ou menos trinta anos, a família do pé de café original terá passado da Martinica para a República Dominicana e depois para Porto Rico, transformando-se numa das principais culturas da América Central.
  
Segundo *José Chalarca «para alguns, as primeiras sementes ou plantas entraram pelo oriente em territórios dos departamentos do Norte de Santander e Santander, vindos da Venezuela; para outros, o cafezeiro chegou pela região de Urubá, vindo da América Central. A versão mais autorizadas sobre a plantação das primeiras sementes de café em território colombiano é a de jesuíta espanhol José Gumilla, que na sua obra El Orinoco Ilustrado consigna o cultivo da planta na missão de Santa Teresa de Tabage, fundada pela companhia na desembocadura do rio Meta, no Orinoco, por volta de 1730». Segundo os especialistas, os jesuítas levaram, sem demora, as sementes do café para Popayán e em 1736 começaram a semeá-las num seminário existente naquela cidade.

«São muitas as notícias do cultivo do café em diferentes regiões do país durante o século XVIII; o vice-rei Caballero y Góngora, em carta de 1987, afirma que o café se produz bem em todas as regiões de Girón (Santander) e Muzo (Boyacá), mas a cultura industrial da planta só se iniciou por volta da terceira década do século XIX, já que a primeira exportação registada com a cifra de 2592 sacos de 60 kg data do ano de 1835. Também é certo que nessas culturas comerciais se realizaram primeiro no Leste do país, na região que hoje ocuparam os Santanderes», escreve Chalarca.

(*José Chalarca, Vida y hechos del café em Colombia, Bogotó, Presencia Editores, 1998.)

Uma história de amor levou o café da Guiana Francesa para o Brasil. O coronel português Francisco de Melo Palheta foi enviado à Guiana para resolver uma disputa fronteiriça entre ambos os países, mas acabou por envolver-se sentimentalmente com uma mulher. No momento da partida, ela ofereceu-lhe um ramo de flores que escondia sementes férteis da planta do café. Assim, terá nascido a indústria brasileira do café. A planta adaptou-se muito bem às condições locais: em 1938, o Brasil já tinha um superavit de café tão considerável que o governo pediu à companhia Nestlé para o ajudar a conservar os excedentes. A companhia suíça criou o processo de secagem por congelação, dando assim origem ao Nescafé. Antes disso, em 1901, um cientista de Chicago, um americano de ascendência japonesa chamado Satori Kato, criara o primeiro café-solúvel instantâneo.

No dia 16 de Março de 1780, o café entrava pela primeira vez no Paraná. A quantidade importada de Cartagena, na Colômbia, foi cerca de vinte e cinco libras, provalmente em semente. O primeiro registo de um cafezeiro no Panamá data de 1790, na herdade de D. Pedro de Ayarza no porto caribenho de Portobello. Em 1822, abriu a primeira loja de café no Paraná e pouco depois, em 1836, ocorreu a primeira exportação de oito quintais provenientes de Chiriquí. Já em finais do século dá-se início à cafeicultura na zona chiricana, onde em 1882, se colheram dois mil quintais de café, numa extensão de trezentos e oitenta hectares. No Panamá, o café passou por épocas difíceis, por se tratar de um território pequeno. O país teve de intruduzir alterações na cultura e concentrar-se no mercado de café especiais, cafés excepcionais e cafés biológicos.

A história do café na Costa Rica remonta aos finais do século XVIII. Segundo conta numa carta enviada por um comerciante panamiano, Agustín de Gana enviou duas libras de café ao governador do país, D. José Vásquez y Téllez. O primeiro a praticar a cultura do café terá sido o padre Feliz Velarde. Sabe-se que a planta florescia no seu solar em 1816, e que envolveu de tal forma os vizinhos nessa cultura que em 1820 fez a sua primeira exportação de um quintal de café para o Panamá. Em 1832, o comerciante alemão Jorge Steipel exportou café da Costa Rica para o Chile, onde o produto foi reembalado e vendido para Inglaterra com o nome de «café chileno de Valparaíso». Mariano Montealegre, um produtor visionário e impulsionador do cultivo entre 1830 e 1840, exportou para Inglaterra, pela primeira vez, em 1843, cinco mil e cinco sacos com cem libras de café.

Desde 1989, que só as variedades arábicas podem ser semeadas na Costa Rica. Actualmente, semeiam-se e colhem-se à mão mais de cem mil hectares de café, que produzem cerca de dois milhões e meio de sacos de sessenta quilos  por ano.

Desde o início que o café foi considerado uma bebida estimulante, que além de fornecer energia e vitalidade, ajudava a ultrapassar certas doenças, a encarar a vida numa perspectiva mais optimista e a adquirir um nível intelectual e criativo mais elevado. A ele se assacou também alguma responsabilidade na particular sensibilidade e virilidade atribuída aos habitantes do Médio Oriente. No entanto, e em conformidade com a ideia de que tudo o que é bom tem um lado mau, o café nos tempos de Constantinopla também foi alvo de reacções negativas e chegou a ser proibido, tanto pelas leis islâmicas como católicas. Tentou-se eliminar o seu consumo, escondendo o pequeno grão de café, oferta sagrada que emerge da terra de forma selvagem, seja em condições rigorosas, de grande aridez, seja em climas tropicais. Contudo, a perseverança dos homens superou a força de quem tentou impedir a sua divulgação, e permitiu conservar essa bebida deliciosa, natural e reconfortante, que nos ajuda a começar o dia e que proporciona ao trabalhador nocturno a mesma energia que sentiram as cabras do rebanho etíope que o provaram pela primeira vez.

Continua...

terça-feira, abril 09, 2013

O MARAVILHOSO UNIVERSO DO PEIXE

 
        (Imagem retirada na Internet)
Ao ler o meu livro, adorei o que o Jamie escreve, e as dicas sobre o peixe. Claro que pensei partilhar a informação com os meus seguidores (as), assim como eu gostei espero que também vocês gostem, se não vos interessar, já sabem? Mandem para canto. Cada vez mais me identifico com ele, quando diz: o peixe deve cheirar a mar, para mim é a definição assertiva da palavra/ingrediente: Peixe.

A verdade sobre o peixe é que, apesar de termos alguns dos melhores peixes do mundo [no R.U.], temos medo deles, de os comer, de os comprar e, especialmente, de os cozinhar. Nota-se na cara das pessoas na fila para comprar peixe. Tantas formas, tamanhos, cores e variedades-peixe redondo, peixe espalmado, marisco. As opções parecem intermináveis e assustadoras! Há dias ouvi uma mãe refilar com a filha por comprar truta, porque achava que ia morrer engasgada com as espinhas. Nem queria acreditar no que estava a ouvir! Hoje em dia, a maioria do peixe é vendida em filetes ou postas e é mais provável ganhar a lotaria do que morrer engasgado com uma espinha de truta, não se preocupem com isso, por favor. Deviam era preocupar-se com a quantidade de peixe que comem.

No Reino Unido, não temos peixe suficiente na dieta. Devíamos comer peixe duas a três vezes por semana, para nos mantermos saudáveis, e não só quando o rei faz anos. Durante o School Dinners (projecto das cantinas escolares), passei muito tempo com médicos, especialistas e nutricionistas e todos concordaram que, para mantermos a saúde, a forma e a mobilidade, devemos comer peixe.

E é agora que o devemos comer. Não vale a pena comer cavala fumada pela primeira vez aos 40 anos. Os Japoneses comem mais peixe por pessoa do que qualquer outro país do mundo e são mais saudáveis e vivem mais tempo. Em comparação, a quantidade de peixe que comemos é mínima. E temos a primeira geração de crianças na história que se prevê ter vidas mais curtas do que as dos pais. Não é preciso pensar muito.

Todos os anos vejo novos alunos da Fifteen apaixonarem-se por cozinharem peixe e estou convencido de que vos vai acontecer o mesmo. É espantoso o que se pode fazer com alimentos frescos e alguma imaginação. Não é preciso exagerar, pois se há algum ingrediente que deve ser tratado de forma simples e com respeito, é o peixe. Espero que depois de experimentarem algumas receitas deste livro, compreendam, pois cozinhar peixe é muito simples e rápido e o resultado é delicioso.

Mas, antes de começarmos a cozinhar, vou dar-vos algumas informações sobre os diferentes peixes e conselhos para quando forem comprar peixe saberem o que estão a fazer e não terem medo. Bem vindos ao maravilhoso mundo do peixe.

Tipos de peixe
Para mim, é mais fácil dividir o peixe em dois grandes grupos: peixe redondo e peixe espalmado.

Peixes redondos
Assim chamados pelo corte transversal e não pela forma, neste grupo encontra:

. a família rosada do salmão, da truta de mar e da truta de rio
. a família branca do bacalhau, do eglefim, do merlúcio e do badejo
. a família gorda das sardinhas, dos arenques, das anchovas e das cavalas
. a família de águas quentes do robalo, do sargo, do ruivo e do luciano
. os irmãos atum e espadarte

Peixes espalmados
Estes peixes são espalmados e passam grande parte do tempo deitados ou a deslizar pelo leito do mar. São uma grande família. Halibute, pregado e rodovalho são os maiores, e solha, solha-das-pedras, linguado e patrúcia, os menores.

Mais alguns...
Há alguns peixes estranhos que não encaixam em nenhuma das categorias, mas quero referi-los porque são excelentes para cozinhar em casa. São:

. tamboril, um peixe muito feio, mas saboroso, do fundo do mar
. algumas variedades de raia
. o espinhoso e estranho peixe-galo

Como comprar o melhor peixe
Comprar peixe não é difícil. Bata ter alguns conhecimentos e confiar no senso comum. Seguem-se algumas orientações para comprar peixe. Se souber o que procura e tiver alguma confiança, comprará peixe fresco, não peixe que já lá está há uns dias.

Sinais de peixe fresco
. O peixe nunca deve cheirar a peixe. Se o peixe for mesmo fresco, deve cheirar a mar. (Ai como compreendo o Jamie.)
. Os olhos devem estar límpidos e brilhantes, não turvos ou vidrados. As guelras devem estar vermelho-escuro. As escamas devem estar intactas e não faltar metade.
. O peixe deve parecer húmido e brilhante, como se tivesse vindo do mar. Deve ter uma camada untosa. Se a pele estiver seca e rija, o peixe é velho.
. O peixe inteiro fresco deve estar rígido. As postas devem estar firmes e opacas e não dobradas em lascas.

Na peixaria
. Veja o peixe em exposição. Foi bem cortado? Foi disposto de forma agradável ou amontoado? Basta uma espreitadela para saber quanto o peixeiro se preocupa com o produto.
. O peixe fresco não deve cheirar a peixe e nem a peixaria!
. O peixe costuma ser colocado por cima de gelo. Apesar de ser óptimo para peixe inteiro ou postas com a pele para baixo, por vezes, quando o interior fica sobre o gelo, queima-se. Se o interior estiver acinzentado, evite-o.
. Muitos peixeiros não escamam bem o peixe. Verifique o produto final. A pele é excelente para comer, mas as escamas não!
. Um bom peixeiro deve retirar as espinhas aos filetes. Assim, o peixe não fica com aquelas espinhas pequeninas e irritantes.
. Telefone para a peixaria de manhã, para saber o que chegou nesse dia. Assim, terá o melhor peixe e não demorará nada quando for buscar a encomenda, em vez de estar à espera.
. Diga ao peixeiro exactamente o que quer. Faça perguntas. Se tiver problemas com a qualidade e a frescura do peixe deve ser sincero. Mas diga-o com encanto e um grande sorriso.
. Se não lhe agradar a oferta, pode experimentar um peixe diferente da mesma família. Se o bacalhau não tiver bom aspecto, experimente badejo, e se o salmão não lhe agradar, experimente truta.
. O mesmo se aplica aos peixes em vias de extinção ou em poucas quantidades. Se houver questões de sustentabilidade com um determinado peixe, pode comprar outro semelhante.
. Se não tiver uma boa peixaria perto de casa, lembre-se de que a Internet tem empresas fantásticas que lho podem enviar em caixas de gelo.
. Tal como nós, os pescadores não trabalham aos sábados ou domingos, pelo que não deve comprar peixe ao domingo e à segunda.
. Não compre o peixe de uma só vez para toda a semana. O peixe fresco deve ser comido em 36 horas, se não no mesmo dia. Não é um produto de compra semanal, independentemente das datas de validade.


____O mestre disse a um dos seus alunos: Yu, queres saber em que consiste o conhecimento? Consiste em ter consciência tanto de conhecer uma coisa quanto de não a conhecer. Este é o conhecimento...____


Confúcio

domingo, março 10, 2013

CHÁ [HISTÓRIA(S) DO CHÁ]

        (Imagem retirada da Internet)
«Descontracção, repouso e deleite»
São alguns dos prazeres da vida que ligamos a uma chávena de chá fumegante. Mas uma das bebidas mais consumidas no mundo pode igualmente ter um efeito estimulante, desde que o chá não esteja em infusão mais de 3 minutos. O chá é bom simples, com açúcar, com leite e em especial com uma gulodice a acompanhar. Misturado com bebidas quentes ou frias confere-lhes um paladar aromático e ajuda a saborear uma boa sobremesa. Permita que o chá o surpreenda!

Foi no início de sec. XVII que os Holandeses trouxeram para a Europa o primeiro chá. Originário do Japão, começou também a ser criado na China. Nessa altura, o chá ainda estava muito longe de ser ingerido como alimento: era apenas vendido nas farmácias como medicamento. Com a introdução do chá preto, o estatuto do chá mudou e transformou-se, ao lado do café e do chocolate, numa bebida aristocrática. Em breve se espalhou e, cerca de setenta anos mais tarde, os Ingleses fundaram a Companhia das Índias Orientais e passaram a liderar o comércio do chá.

Por «chá russo» entende-se o chá preto da Ásia, trazido em caravanas ao longo da Rússia até chegar à Europa Central. O «chá das caravanas» era extremamente apreciado pelos conhecedores, pois ao contrário do chá que era transportado em navios durante meses, mantinha intacto o seu paladar.

No sec. XIX, o comerciante inglês Thomas Lipton aperfeiçoou o comércio do chá: colocou no mercado misturas embaladas de chá com o seu nome.

O efeito estimulante do chá depende também da cafeína (ou teína), tal como o café. Mas há uma diferença: o chá não tem um efeito tão forte, é mais lento e mais demorado a actuar. A cafeína espalha-se lentamente pelo corpo. As propriedades do chá estimulam o cérebro e o sistema nervoso central, contrariamente ao café, que afecta o coração e a tensão arterial. Por conseguinte, depois de bebermos uma chávena de chá temos uma grande capacidade de reacção e de concentração. Os apreciadores particularmente sensíveis que temem as insónias, devem prescindir do café ou do chá depois das 16 h.

A folha do chá, quer seja verde ou preto, o chá provém sempre da mesma planta, só que é tratado diferentemente.

Método tradicional para a preparação do chá.
1. Emurchecimento: grandes ventiladores e aquecedores secam e amaciam as folhas verdes do chá.
2. Enrolamento: as folhas secas do chá entram na máquina de enrolar para serem destruídas.
3. Fermentação: o suco da planta sai e, em contacto com o ar, oxida e fermenta. As folhas coloram-se de vermelho-cobre. É agora que se desenvolve o aroma.
4. Secagem: a fermentação é parada com ar quente. Depois de seco e escurecido, o chá é escolhido.
5. Selecção: quando é peneirado, o chá é dividido em:
. Chá de folhas: bocados «inteiros»
.Broken: chá de folhas miúdas. Abre mais depressa que o chá de folhas.
.Fannings: folhas mais pequenas: indicado para sacos de infusão.
.Dust (pó): as folhas mais pequenas.

O chá verde não é fermentado, mas sim passado por vapor. Isso destrói os fermentos e as enzimas no chá, mas não o tanino. Por isso é que o chá verde é mais amargo que o preto, e o resultado da sua infusão mais claro.

Oolong é um chá cujo o processo de fermentação foi interrompido. A nível de paladar, situa-se entre o preto e o verde.

No mundo inteiro usa-se actualmente um processo mais abreviado: as folhas secas são despedaçadas, esmagadas e enroladas durante o processo. No entanto, isso põe fim ao chá de folhas!

«Chás de todo o mundo»
A maior parte dos chás que bebemos vem da Índia: Assam é um tipo forte e aromático, reconhecível pela sua cor escura na chávena. Darjeeling é um chá delicado, de cor clara e sabor a fruto. É proveniente dos Himalaias. Deliciosos são os «first flush», da colheita da Primavera, e o «second flush», um pouco mais escuro e forte, dos meses de Verão.

No Sri Lanka cresce uma espécie amarga e forte que ainda hoje tem o nome antigo deste país: Ceilão.

A maior parte do chá verde é cultivado na China: duas das variedades mais conhecidas são o Gunpowder (pólvora), de folhas enroladas em forma de esfera, é o Chunmee.

Na ilha de Java, Indonésia, cultiva-se um chá semelhante ao Assam. Os chás de Samatra são mais utilizados em misturas.

Nas latas e nos pacotes de chá vem indicada a origem, o tamanho e a qualidade das folhas:
.Flowery: quer dizer florido: o chá tem um aroma perfumado, liga bem com limão.
.Orange: de grandes folhas aromáticas, deve ser bebido sem leite.
.Pekoe:penugem branca, em chinês: apenas se encontram naquele chá de folhas mais pequenas e tenras. Tem um sabor amargo.
.Tippy: chá de folhas delicadas, escolhidas entre as melhores, mais jovens e mais claras.

«Chá no bule»
Para obter uma chávena de chá precisa de 1 colher de chá (1,2 g) ou uma saqueta e 1,5-2 dl de água. Por cada litro de água são necessárias 6 colheres de chá (9-12 g).

Será melhor preparar o chá utilizando dois bules. Num fica em infusão, noutro é servido. Os coadores de lã, porcelana ou bambu são bastante úteis quando utilizar apenas um bule. Ponha sempre o chá solto no bule, pois ele precisa de espaço para inchar.

O bule deverá ser de faiança, porcelana ou vidro. Ao contrário do que se diz, não é necessário molhá-lo previamente com água a ferver.

Mexa um pouco o chá e passe-o de seguida por um coador para o bule onde o vai servir. Se quiser utilizar um filtro, só tem que o deitar fora.

Pode adoçar com açúcar ou edulcorantes e acompanhar com natas ou leite. Quem gostar de pôr limão, deverá escolher um chá forte. O rum pode encobrir um pouco o paladar.

«Chá no samovar»

O samovar é fundamental para a arte de bem apreciar o chá na Rússia. A água é aquecida nos grandes recipientes de cobre, bronze ou prata e aí mantida à mesma temperatura durante bastante tempo. Em cima está um pequeno recipiente com chá concentrado. Para uma chávena de chá coloque uma pequena quantidade na chávena (50-70 ml) e dilua o chá forte ao seu gosto com água quente do samovar.

Os samovares eléctricos não dão o mínimo trabalho e são enchidos com água fria.

Os samovares a carvão requerem mais trabalho. O carvão incandescente (feito no grelhador do jardim) é colocado no tubo de aquecimento a meio do compartimento da água. Pouco depois a água começa a ferver.

Para fazer o chá concentrado, utilize por chávena 3 colheres de chá (4-5 g) de chá ou 3 saquetas e 1,5-2 dl de água a ferver. Esta quantidade de extracto, diluída é suficiente para 3 chávenas. Para obter 0,5 l de extracto precisa de 10 colheres de chá (15-20 g).

Coloque as folhas de chá num bule, cubra com água a ferver e deixe repousar cerca de 5 minutos. As mais indicadas são as variedades pretas do chá do Ceilão ou da Índia. Deite o chá concentrado através de um coador no recipiente do samovar, ou tire apenas o filtro do bule.

Coloque o recipiente com o chá concentrado sobre a tampa do samovar ou sobre o tubo de aquecimento. Assim, o chá concentrado manter-se-á sempre quente.

«Receitas de chá gelado»
O chá gelado nada tem a ver com chá frio! Para obter esta bebida tradicional americana (conhecida como iced tea) precisa de uma chávena de chá bem forte e bem quente e um copo de cubos de gelo. Se quiser, pode juntar um pouco de açúcar e limão. Ao contrário de um chá que arrefece normalmente, o chá gelado é arrefecido de forma brusca. O seu aroma e o seu paladar são deste modo realçados, resultando numa bebida bem refrescante.

Por cada copo de chá gelado precisa de duas colheres de chá ou dois sacos de chá preto e 200 ml de água a ferver. Deixe em infusão durante 4 minutos, depois coe. Adicione açúcar e limão a gosto.

Encha um copo alto e estreito até dois terços com cubos de gelo e cubra-os com o chá quente. Não receie o copo não vai partir-se. Para beber utilize uma palhinha.

Os Norte-Americanos bebem o chá gelado durante o Verão para assim matarem a sede. A sua receita serve de base para inúmeras variantes. Para aromatizar pode juntar-lhe uma pitada de gengibre ou cardamomo, folhas de hortelã ou de erva-cidreira, groselhas ou pedaços de ananás. Ficará ainda melhor se for misturado com sumo de ananás, cerejas ou laranja, e até com gin, conhaque, rum ou Campari.

P.S. Retirei esta informação de um livro sobre chás. Como achei muito interessante, pois havia muito sobre chás que eu não sabia, gostei, e muito! Daí eu  partilhar com os meus seguidores. Mas já sabem? A quem não interessar esqueçam o que leram façam como a Isabel (eu) colocar no canto o que não tem interesse, ou deixou de ter...

______Não é que seja exatamente corajoso, meu coração tem é isso de bom: não ocupa espaço com mágoas e, com o tempo, ele se tornou desmemoriado pra assuntos de frustração._______


Ana Jácomo

sábado, outubro 03, 2009

COMIDA E CULTURA [6º PARTE]

Continuação daqui, daqui, daqui, daqui e daqui...

O estudo das cozinhas regionais europeias levanta problemas complexos nem sempre entendidos pelos estudiosos de culinária.

Para começar, é legítimo pôr a questão de saber em que medida é que se pode falar de «cozinhas nacionais», fazendo coincidir regiões culinárias com regiões políticas.

Ninguém põe em causa, por exemplo, que a cozinha normanda faz parte da cozinha francesa, mas quantos se recordarão de que a Normandia ainda fazia parte da coroa inglesa quando Henrique IV morreu e que, por isso, num tratado culinário hipoteticamente escrito em 1422, esta cozinha seria legitimamente classificada de inglesa?

O facto, porém, é que, para a nossa rainha D. Filipa de Lencastre, tanto a lampreia como o entrecôte à bordalesa eram iguarias inglesas...Pela mesma ordem de ideias, a quesaílla e a merendera de «Los Llanos de Olivenza» eram queijos portugueses em 1656...

O número das regiões culturais que mudaram de país, ou que foram divididas por fronteiras políticas, é extenso--a Catalunha e os países bascos, que se integram no nosso mundo peninsular, são apenas duas das muitas regiões culturais europeias que nele figuram.

Recorda-se, para ultimar o assunto, que ainda há bem poucos anos os livros de cozinha portuguesa incluíam receitas de Angola e de Moçambique...

A reacção contra a tendência para fazer coincidir as divisões culturais e gastronómicas com as divisões políticas e administrativas começou em 1958, com a publicação do clássico de Waverly Roat, que lhe mereceu o oficialato da Legião de Honra, e cujo estudo atento é unanimemente tido por essencial a quem se interessa por questões relacionadas com a gastronomia. Waverley dividiu a França em três zonas: a da manteiga, que está na base da haute cuisine, a da banha e a do azeite.

Em 1981, Anne Willan, cujo French Regional Cooking é considerado o melhor receituário regional francês das últimas décadas, optou pela adopção da divisão administrativa pré-napoleónico, afirmando-a mais condizente com a realidade cultural e gastronómica da França. Têm surgido outros critérios, embora nenhum se tenha sobreposto ao de Root, que tem, sobre todos, a vantagem de permitir, pelo menos teoricamente, uma análise comparativa e de conjunto de todas as cozinhas regionais europeias. Classificámos esta possibilidade de teórica porque ela ainda não é, efectivamente, possível: não existem os estudos, nem se conhecem os documentos, necessários à desejada, e desejável, visão de conjunto a que nos referimos.

Para se compreender esta lacuna, basta ter em mente que a história da gastronomia é recente. Começou, por dizer-se, em 1782, com a publicação da obra de Pierre-Jean Baptiste, Le Grand d`Aussy, a que se seguiu L`Historiographie de la Table, de Verdot. Posteriormente, dedicaram-se ao assunto Armand Lebault, Bertrane Guégan, Raymond Oliver, e Anne Willan, notabilizando-se Le Cuisinier Français, de Guégan, que abriu as portas aos estudos, agora mais rigorosos dos anos 50.

Foi só, porém, a partir dos estudos publicados nos Annales por Marc Bloch e por Lucien Febvre que a história da alimentação e da gastronomia adquiriu um carácter científico, destacando-se, neste campo e a partir dessa data, Emmanuel Le Roy Ladurie, Ernest Labrousse, Fernand Braudel e Barbara K. Wheaton, para apenas citarmos os mais conhecidos dos muitos estudiosos dedicados a este ramo da história que provoca, dia a dia, mais interesse em todos os países. Se existem, porém, documentos que permitem chegar a conclusões válidas sobre o evoluir da chamada haute cuisine, esses elementos escasseiam no que se refere tanto à alimentação das classes populares como à evolução da cozinha regional. Como afirma B. K. Wheaton,«l`étude des cuisines régionales n`est pas encore suffisament avancée pour pouvoir porter un regard d`ensemble sur leur histoire».

O LIVRO DE

MARIA ODETE CORTES VALENTE...

Não parece necessário acrescentar nada ao que foi dito para se compreender até que ponto a cozinha regional é importante para a identificação cultural de uma colectividade, e para que ela subsista e sobreviva num mundo em que os grandes tendem a esmagar culturalmente, os pequenos. Terminadas as românticas veleidades que nos levavam, ainda à bem pouco tempo, a encher as paredes das nossas salas de aulas com mapas em que se afirmava «Portugal não é um país pequeno», resta-nos encarar o mundo com a dimensão que realmente temos-- a dimensão de um país pequeno e periférico dotado de uma fé antiga e profunda na sua capacidade de sobreviver.

Não basta, porém, que tenhamos fé-- temos de fomentar a diferença, isto é, temos que cultivar tudo o que nos diferencia dos outros, para que os outros não nos tornem iguais a eles, já que é essa a forma contemporânea de os grandes conquistarem os pequenos.

A cozinha regional que temos-- não interessa, aqui, discutir o problema do seu valor intrínseco-- é uma expressão real e concreta da nossa vivência e da nossa cultura, e é, por isso mesmo, um dos elementos de diferenciação que temos de cultivar para mantermos a nossa identidade.

Este livro vem contribuir para a sua redescoberta, para a sua conservação e para a sua divulgação, colocando nas mãos de todos um manual prático e simples da arte de «comer à portuguesa», isto é, da arte de comer de acordo com o paladar que criámos ao longo da nossa história.

Trata-se de um manual que terá de figurar nas bibliotecas dos responsáveis pelos nossos hotéis e restaurantes, gente que, tendo estudado no país do relógio de cuco, está firmemente convencida de que somos cucos...Trata-se de um livro reformulado e ampliado. Editado pela primeira vez em 1962, levou o prazer de comer a muitas casas, cumprindo o objectivo da sua autora, que, apesar disso, não se deu por satisfeita. Com o auxílio de amigos e familiares, continuou a reunir receitas oriundas de todos os pontos do país, e o resultado está à vista: um reportório regional completíssimo que vai melhorar o quotidiano de milhares de portugueses. Trata-se, para além disso, de uma obra escrita numa linguagem simples e despretensiosa, que retoma, neste campo, a tradição dos receituários tradicionais.

Por último, vale a pena mencionar que Maria Odette Cortes Valente, grande cozinheira e crítica feroz de tudo o que lhe sai das mãos, provou todas as receitas que constam deste seu livro, o que é, sem dúvida alguma, uma garantia da sua qualidade...

FIM

sexta-feira, outubro 02, 2009

COMIDA E CULTURA [5º PARTE]

Continuação daqui, daqui, daqui e daqui...

Até a ideia que se tem da riqueza rural inerente à matança do porco--ideia em grande parte criada por textos escritos por citadinos empenhados em romantizar juventudes rurais já distantes no tempo--cedeu perante a investigação histórica. Hermandinquer demonstrou que poucas famílias rurais dispunham de meios para criar um porco, e a análise dos inventários franceses leva à conclusão de que nenhum dos mitos modernos sobre riqueza rural francesa anterior à Revolução de 1789 tem o menor fundamento.

O que se diz da França pode dizer-se dos restantes países europeus, mesmo dos que temos por ricos--a Dinamarca, por exemplo, só por volta de 1870 se libertou inteiramente da fome...

Lado a lado com este muito subsiste outro, este medido em quilómetros e não em anos, de acordo com o qual as tradições culinárias do passado se mantêm vivas numa distante e mítica província em que se refugiam admiráveis cozinheiras já idosas, e em que se preservam intactas espantosas e antiquíssimas receitas desconhecidas nas grandes cidades.

Como é que estes mitos subsistem numa época em que a história da alimentação e da culinária chegou à universidade e em que número crescente de pessoas tem, sem sair do seu bairro, um número quase ilimitado de opções culinárias é, sem dúvida alguma, difícil de entender.

Dificíl, mas não impossível.

Antes de mais, é necessário ter em linha de conta que estes mitos criados e alimentados por gente oriunda da província, que veio envelhecer à cidade cultivando recordações que o passar dos anos foi dourando e mitificando. A glória de correr à desfilada ao longo da ribeira acaba por se confundir com o bacalhau com todos comido depois da Missa do Galo, e a vida despreocupada da juventude acaba por casar, na memória desta gente, com o leite-creme dos dias festivos. Se a mãe era meiga e protectora e se os dias decorriam sem problemas, a comida tinha, necessariamente, de ser deliciosa...

Quem fala, por outro lado, do que comia em criança refere-se quase sempre, senão sempre, à comida dos dias festivos, esquecendo o naco de pão e a sopa de «embuchar» do quotidiano não romantizado...

Não vale a pena repetir o que ficou dito sobre a «emigração social», embora tudo o que se disse sobre este assunto tenha uma grande importância para o estudo do clima social em que estes mitos se desenvolvem.

Vale a pena, no entanto, referir uma outra questão raras vezes abordada pelos que cultivam mitos culinários: a questão de saber se a cozinha dita tradicional o é efectivamente.

Das sete sopas classificadas de tradicionais de Entre Douro e Minho numa recente e notável obra dedicada à cozinha tradicional portuguesa, três contêm batatas e duas arroz--géneros que só se popularizaram, em Portugal, no decorrer do século XIX.

Independentemente da questão, que tanta tinta tem feito correr, da origem da maionese, tem-se por certo que este molho fez a sua aparição na Península em 1795, ou, mais precisamente, no banquete que nessa data o célebre D. Manuel Godoy deu, em Madrid, para celebrar o facto de Carlos IV lhe ter concedido o título de Príncipe da Paz. Não há elementos que permitam determinar em que data é que este molho chegou ao Porto. Teria sido levado de Lisboa? Teria chegado pela mão dos invasores franceses? O que se sabe é que a francesíssima maionese, associada ao puré de tubérculo ainda mal conhecida, que ainda não requerera nacionalidade portuguesa--a batata--deu origem a uma iguaria que alguns não hesitam em classificar de «tradicional»: o bacalhau à Zé do Pipo...

Na sequência desta maneira de actuar, acabamos por incluir o hamburguer na lista dos pratos «tradicionais» portugueses... O problema não se põe--há que dizê-lo desde já--unicamente em relação a Portugal. Como nota, num comentário, a um tempo divertido e irónico, a notável historiadora do evoluir culinário europeu Barbara Ketcham Wheaton, referindo-se ao «tradicionalíssimo» cassoulet de Toulouse e Carcassonne,«il est fort instructive de voir ainsi rappeler qu`un plat dont les ingrédients tradionnels suscitent aujourd`hui des polémiques passionnées...est somme tout relativement récent, tout de moins dans sa forme actuelle...»

É que não existe uma cozinha regional imutável-- tudo, da batata ao espargo, contribuiu o enriquecimento das cozinhas regionais, que não teriam resistido ao tempo se contassem apenas com os ingredientes e os processos conhecidos das «simpáticas e idosas» cozinheiras da tal província mítica atrás referida.

Esta evolução não se processa, porém, apenas em função dos novos ingredientes e processos que vão surgindo, processa-se, também, em função de um«aburguesamento» que parece fazer parte integrante do evoluir social. Para se compreender este «aburguesamento» bastará comparar as receitas de cozinha alentejana contidas em qualquer livro de cozinha regional com as colhidas por Aníbal F. Alves nas memórias de alentejanos que nunca tinham ouvido falar de cozinha regional. Estes depoimentos vêm publicados na Cozinha dos Ganhões, um livro cujo o valor cultural parece ter passado despercebido.

Por último há que referir, ainda neste capítulo, a deturpação que é feita, todos os dias e em toda a parte, dos chamados pratos típicos das diversas regiões gastrómicas. Esta deturpação assenta na necessidade que os chefes têm de adaptar pratos vinculados a uma cultura aos paladares de outras culturas em cujas memórias eles não estão referenciados. O fenómeno surgiu com o aparecimento do chamado «turismo de massas», responsável pela deslocação anual de milhões de pessoas de baixo nível cultural, que se sentem atraídas pelo carácter aparentemente exótico das cozinhas dos países que visitam, mas que só aceitam iguarias que não violem os seus hábitos alimentares.

Chefes, gerentes e técnicos, culturalmente incompetentes mas de competência «técnica» comprovada por escolas mais dadas ao marketing do que à conservação de valores culturais, estão a destruir, diariamente, as cozinhas dos países que tomam o turismo por uma fonte inesgotável de rendimento

Continua...

quinta-feira, outubro 01, 2009

COMIDA E CULTURA [ 4º PARTE]

Continuação daqui, daqui e daqui...

De Espanha, seguiu para o Vaticano, donde o Papa mandou os exemplares que recebera a Philippe de Sivry, que, por sua vez, os fez chegar às mãos do botânico François-Charles de Lescluse. Este, actuando de acordo com os costumes dos cientistas da época, desenhou alguns tubérculos, que identificou com uma legenda histórica: « Petite trouffe (taratouffi) reçue de Sivry, à Vienne, le 26 Janvier 1588. Papa des Péruviens de Pierre Cieça.»


Admite-se que uma outra espécie de batata, esta oriunda da Vírginia, tenha chegado a Inglaterra, em 1585, pela mão de Sir Walter Raleigh, mas a questão é controversa e, de qualquer forma, a sua chegada não altera a sequência dos acontecimentos. O importante é registar que a batata chegou à Europa no final do século XVI e que, apesar de ter sido quase imediatamente estudada e plantada, só começou a entrar nas ementas europeias dois séculos mais tarde.


Em Portugal, por exemplo, só começou a ser plantada no século XVII e, mesmo assim unicamente para alimentação de animais. Os receituários de Domingos Rodrigues e de Lucas Rigaud, que foram os primeiros publicados em língua portuguesa, revelam que este tubérculo era praticamente desconhecido em Portugal, onde o seu uso, na alimentação humana, só se generalizou no século XIX.


O que aconteceu foi que a Europa recusou inicialmente, e só muito lentamente foi aceitando, um alimento não referenciado na sua memória, dado que não conhecia outros que lhe fossem semelhantes e que lhe permitissem assimilá-lo sem cometer uma violência cultural.


Com o feijão, porém, já as coisas se passaram de outra forma. Trazido da América por Cristóvão Colombo em 1493, no regresso da sua segunda viagem ao novo continente, foi baptizado pelo francês Oliver de Serre com o nome de phasiols, em 1594, data em que já começara a ser plantado e utilizado em vários pontos do continente europeu. Para se fazer uma ideia da rapidez com que essa novidade americana se divulgou bastará, certamente, referir que o lexicógrafo inglês Ronald Cotgrave mencionou nada mais nada menos do que dezassete variedades de feijão num dicionário que publicou em 1611, e que a «novidade» já figurava nas listas de preços das feiras francesas nos meados do século XVII.

O contraste entre a lentidão com a Europa aceitou a batata e a rapidez com que aceitou o feijão é evidente, e tem uma explicação bem simples: no primeiro caso, a memória do europeu não dispunha de elementos que lhe permitissem compará-la e, no segundo, dispunha de dois alimentos que lhe permitiam fazê-lo sem violentações: as castanhas e as favas que, frescas ou secas, estavam na raiz da alimentação medieval europeia. Isto, para não falarmos do caso especial dos países que tinham estado em contacto directo com os invasores africanos, já que estes dispunham de outra referência preciosa: o grão, que se lhe assemelha, até no que se refere à sua preparação culinária...

O«acto de comer» está, assim, ligado à memória por um vínculo de dependência: o homem aceita o que a sua memória reconhece, ou pode referenciar, e repudia tudo o que ela desconhece, ou não pode referenciar por falta de elementos.

Cada época tem os seus mitos, as suas crenças--religiosas ou científicas-- e as suas «verdades absolutas e definitivas», sejam elas quais forem e durem o que durarem.

Muitos dos mitos relacionados com o «acto de comer» têm uma origem histórica conhecida, alguns enraízam-se numa praxis histórica entendível, e outros exprimem, em termos de «medo», perigos ainda não explicados convenientemente em termos científicos.

Quando, no século IV a. C., Pintágoras classificou as favas de «doentias», a sua intenção era clara: pôr os seus contemporâneos de sobreaviso contra a doença, então inexplicável e incurável, que hoje designamos por «favismo»--doença que se tem por hereditária, que raras vezes se encontra fora da zona cultural da bacia mediterrânica e que era, ao que se julga, mais frequente no tempo de Pitágoras do que actualmente. É certo que o mito de que Pitágoras foi eco não afectou nos hábitos alimentares europeus, mas é igualmente certo que ele ainda se mantém vivo em certos pontos da Itália Meridional.

Ainda hoje se diz que o marisco não deve ser consumido nos meses «sem r», isto é em Maio, Junho, Julho e Agosto, apesar de ninguém saber em que mês é que saiu do mar o marisco adquirido nos estabelecimentos de venda de peixe congelado e de os novos métodos de conservação dos alimentos terem alterado completamente muitas das regras sanitárias do passado.

São tantos os exemplos que se poderia dar destes mitos que não vale a pena prosseguir-- basta dizer que eles fazem parte integrante do património cultural de todas as colectividades.

Nenhum destes «mitos menores», porém, tem grande importância para o estudo da essência e da evolução do «acto de comer»--os que têm. efectivamente, importância são os «mitos maiores» em que se alicerçam muitos dos erros conceituais mais comuns nesta matéria.

Destes, um dos mais correntes e graves é o que leva um número infinito de pessoas a associar o «passado» com «abundância» e o «presente» com «a escassez».

Trata-se de um mito que não tem o menor fundamento histórico, mesmo no caso dos países em que a sua origem é conhecida, como é o caso, já atrás referido, da Inglaterra. Os estudos levados a cabo no decorrer das últimas décadas-- estudos esses cada vez mais frequentes e profundos--não se limitam a desmenti-lo: revelam que a verdade está no pólo oposto e que a Europa viveu em regime de escassez até há muitos poucos anos.

O pão, as favas, as castanhas e os nabos foram, durante séculos, a base da alimentação de vastas camadas populacionais espalhadas por aldeias e lugarejos dominados pela doença e pela escassez alimentar. O europeu, periodicamente reduzido à fome por cheias e secas que não sabia, nem podia, controlar; vitimado por guerras e incursões que pareciam ter-se aliado à Natureza para lhe destruir as searas e espoliado, de quando em quando, do pouco que conseguia amealhar, só muito recentemente se libertou da fome e miséria.

Os estudos levados a cabo por R.J. Bernard em França levam a crer que a vida dos camponeses do século XVIII se caracterizou pela má nutrição--uma má nutrição endémica,interrompida, muito de quando em quando, por festins pantagruélicos e por longos períodos em que a fome dizimava as aldeias...
Continua...

quarta-feira, setembro 30, 2009

COMIDA E CULTURA [ 3º PARTE ]

Continuação daqui e daqui...

Se o homem não tivesse a possibilidade de recordar o passado e de o relacionar com o presente, não haveria cultura, e as sociedades não teriam evoluído. Memória e cultura quase se confundem e, como o «acto de comer» é essencialmente cultural, não espanta que assente, em grande parte, em dados retidos na memória.

Um dado obtido através dos sentidos, seja um cheiro, uma tonalidade cromática, o paladar de um alimento, ou um som, evoca imediatamente uma época do passado, e o seu grau de agradabelidade ou de desagradabilidade depende do posicionamento afectivo de cada um face à época ou ao acontecimento evocado. O cheiro a estrume, a maçãs, ou a terra molhada será agradável a quem passou a mocidade no campo, e neutro, ou, até desagradável, a quem passou entalado entres os muros de uma cidade.

Do plano individual pode passar-se ao colectivo porque a memória do indivíduo vincula-o aos valores culturais da sua colectividade, mesmo que ele não se aperceba disso, e está na raiz de muitas reacções e opções que se julga,erradamente, serem voluntários e livres.

Um emigrante italiano, por exemplo, será atraido pelo cheiro exalado pelos restaurantes da Little Italy, mas esse mesmo cheiro repelirá um emigrante sueco de passagem na área. Para se entender bem a importância do papel desempenhado pela memória no «acto de comer» há, porém, que relacioná-la com outros factores e, muito especialmente, com função protectora que cada colectividade exerce em relação aos indivíduos que dela fazem parte.

A integração cultural é, antes de mais, um factor de segurança. Integrado na sua colectividade, o indivíduo sente-se defendido e seguro: conhece as normas de conduta, sabe quais são as regras do jogo, possui uma escala de valores que lhe não permite correr riscos senão dentro de limites previamente conhecidos e não está, por tudo isto, em perigo de ser abandonado , desprezado e condenado à solidão.

Forçado a enfrentar o desconhecido, é uma cultura assente em regras e valores alheios aos da sua, o homem sente-se perdido e faz tudo o que está ao seu alcance para se reencontrar, isto é, para descobrir, num mundo adverso, regras e valores que lhe sejam familiares e que ponham termo à solidão.

Os emigrantes--trata-se de um exemplo perfeito--criam imediatamente restaurantes que os devolvem ao seu ventre materno cultural, proporcionando-lhe os pratos e os vinhos da sua infância, e educam os filhos no culto das suas tradições culinárias, na convicção instintiva de que estes se manterão fiéis às suas raizes enquanto se mantiverem fiéis àquilo em que estas melhor se concretizam: a cozinha da mãe-pátria.


Nada disto tem a ver com a qualidade gastronómica intrínseca dos pratos que comem, até porque os emigrantes, normalmente oriundos de regiões pobres e atrasadas, não guardam na memória elementos que lhe permitam formular juízos de valor em matéria de gastronomia. Põe-se o mesmo problema em relação às diversas classes sociais que, para este efeito, constituem autênticas colectividades com valores culturais comuns, embora, no caso destas, a emigração tenha de ser entendida de outra forma: emigra, para este efeito, quem passa de uma classe para a outra, e «ascende»--usamos a palavra no sentido usual--quem passa para uma classe económica e culturalmente mais evoluída. Quem «ascende» é projectado para um mundo desconhecido, cuja escala de valores lhe é alheia, e reage sempre da mesma forma: ou se refugia no culto da sua escala original, inventando formas de racionalizar a sua inadaptação face à colectividade em que acaba de entrar, ou esconder a sua inadaptação, aceitando em termos absurdamente entusiásticos a escala de valores da sua nova colectividade.


No primeiro caso, defende desesperadamente a cozinha «simples»,«pura», e não requintada que conhece desde criança, e em relação à qual se pode pronunciar sem correr o risco de se revelar ignorante. Na sequência lógica desta atitude, repudia a cozinha requintada, que tem por «mistificada» e em relação à qual se sente profundamente inseguro.

No segundo caso, defende os valores gastronómicos da classe a que ascendeu em termos tão entusiásticos que acaba por ficar «mais papista do que o Papa», sem se aperceber de que a sua adesão incondicional é tão reveladora aos olhos dos entendidos como é o repúdio, igualmente incondicional, dos que optam pela primeira atitude: gabará, por exemplo, uma «sopa de pacote» se lhe afirmarem tratar-se de uma vichvssoise, e beberá, com demostrações de agrado, um vinho feito a martelo que lhe garantem tratar-se de um excelente Bordéus.

Em termos muito simples, pode dizer-se que o homem tende a repudiar inicialmente, e só aceitar muito lentamente, tudo o que não está referenciado na sua memória e que, em contrapartida, aceita com relativa rapidez tudo o que nela está referenciado.

Um exemplo concreto contribuirá para a compreensão deste fenómeno--o caso da batata.

Enviado para a Europa por Pedro de Cieza de León, companheiro de Pizarro, este tubérculo teve uma vida acidentada até ser aceite em todos os países da cristandade.
Continua...

terça-feira, setembro 29, 2009

COMIDA E CULTURA [2º PARTE]

Continuação daqui!
Cristãos, muçulmanos e judeus acabaram por se encontrar na Península Ibérica e precisamente porque viveram ao mesmo tempo, no mesmo espaço geográfico, tiveram de zelar pela sua «identificação».
Até por ser imprescindível, o «acto de comer» foi o primeiro, e quem sabe se o mais natural, dos processos a que recorrem para este efeito.
Inútil será, certamente, chamar a atenção para o facto de que esta escolha proporcionou, aos adeptos das três religiões, a possibilidade de se declararem diariamente,e mais do que uma vez por dia, fiéis às suas culturas, tanto a nível familiar como a nível das colectividades em que se encontravam politicamente integrados.
Que a indentificação entre a religião e o «acto de comer» foi tida por importantíssima é uma coisa que ninguém duvida.
Andrés Bernaldez, curador dos palácios reais, amigos de Cristóvão Colombo e autor de umas extensas Memorias del Reynado de los Reys Católicos, tem um texto esclarecedor sobre a questão:«Avéis de saber que las costumbres de la gente comúm de ellos antes de la Inquisición, ni mas ni menos eran que de los proprios hediondos judios; e esto causava la continua conversión que com ellos teniam. Asi eran tragones e comilitones, que nunca dexaran el comer a costumbre judaica de manjarejos e olletas de adafinas e manjerejos de cebollas e ajos refritos com aceite, e la carne guisavam com aceite, e lo echavan en lugar de tocino e de grossura, o por escusar el tocino; e el aceite com carne e cosas que guisam hacen muy mal oler el resuello, e asi sus casas e puertas hédan mal a aquellos manjarejos; e ellos mismo tenían al olor de los judios, por causa de los manjarejos e de no ser baptisados»
Para o cronista, como se vê, o judeu define-se no «acto de comer» e pelo «acto de comer», tal como o muçulmano se definia pelo cordeiro que sacrificava de cabeça voltada para Meca, em obediência ao seu parceiro ritual, e o cristão pelo uso de banha e toucinho.
O conde de Salazar, incumbido de fazer aplicar o decreto real de 1610, que expulsava os mouros de Espanha, não hesitou em fazer saber aos bispos que ser cristão era, essencialmente, comer toucinho, beber vinho e «hablar en cristiano»...
Manifestação cultural que é, o «acto de comer» reflecte, necessariamente, o mundo conceptual de cada colectividade e, quando este mundo se modifica, ainda que temporariamente,essa modificação temreflexos imediatos nele.
Um exemplo flagrante desta modificação é a influência que o puritanismo de Cromwell exerceu sobre os hábitos alimentares ingleses. Quando mais não seja porque as considerações sobre a má qualidade da cozinha britânica se tornaram proverbiais, mesmo nos países dotados de cozinhas inferiores à britânica, vale a pena comentar este caso de incontestável interesse histórico.
A convicção de que o passado se caracterizou por uma grande abundância de géneros alimentícios, por receitas magníficas e por um técnica culinária imensamente superior à parte do presente, faz parte integrante do património mítico de todas as colectividades. Trata-se de uma convicção que não tem qualquer fundamento histórico, mas como mais adiante se voltará a referi-la, o que interessa aqui registar é que este «passado» mítico nunca é racionalizado e nunca é definido em termos rigorosos.
Esta regra, tem uma excepção, já que o «passado mítico» dos ingleses é definível com algum rigor: os good old days britânicos cobrem o periodo que decorreu do ínicio do século XVI aos meados do século XVII ou, melhor ainda, o periodo que decorreu do inicio do reinado de Henrique VIIIà execução de Carlos I, data em que a época da abundância mítica cessa abruptadamente para dar lugar aos lean years, isto é,aos anos das vacas magrasm
Basta citar os nomes de Henrique VIII, da rainha Isabel e de Shakespeare e eventos como a vitória sobre a Espanha filipina, para se concluir que este foi um período invulgarmente dinâmico e pujante da história inglesa, mas o que interessa registar é que, durante este periodo, a Inglaterra separou-se da Igreja de Roma-- mais do que permissiva em matéria alimentar-- para abrir as portas a um puritanismo reformador que viria a atingir o apogeu durante o «reinado republicano» de Cromwell.
Sob o dominio dos puritanos, o rosto da inglaterra modificou-se radicalmente: o prazer da mesa adquiriu um carácter pecaminoso; a arte de cozinhar passou a estar associada aos «excessos» de Roma, e temperos como o alho, a cebola e o louro forma postos de parte por fazerem parte integrante da cozinha italiana.
Em meia dúzia de anos, a cozinha inglesa, rica e vigorosa como é evidente a quem conheça o receituário de Alexander Neckham e o célebre Book of Cury do cozinheiro de Eduardo III, definhou de tal forma que se tornou irreconhecível.
Daí a distinção que perdura na memória do povo, entre o passado de abundância que antecedeu o puritanismo de Cromwell e a pobreza que se lhe seguiu.
Referindo-se a esta quebra súbita de uma tradição já secular, um historiador comentou, há cerca de dez anos «É dificil formular um juízo rigoroso sobre a influência exercida pelo puritanismo na cozinha inglesa, mas é revelador que, por causa dele, os folguedos e as festas, incluindo as natalícias, tenham sido abandonadas, e que o uso das especiarias e o consumo do vinho tenham sido desencorajadas...»
Valerá a pena prosseguir para se entender que nos sentamos sempre à mesa com os conceitos do mundo e da vida e com as nossas religiões?
Continua....

domingo, setembro 27, 2009

COMIDA E CULTURA [1º PARTE]

Num dos meus livros de cozinha que se chama "Cozinha Regional Portuguesa" de Maria Odete Cortes Valente estava eu a ler a introdução o que muito me agradou...

Comida e cultura:
Afirma-se repetidamente que lemos pouco e que raras vezes saímos de casa para ir ao teatro, a concertos e a outras manifestações oficialmente classificadas de culturais.
Tudo isto é verdade, já que somos pouco dados, por um conjunto de razões que não interessa aqui discutir, à prática de «actos culturais conscientes».
Um povo, porém não exprime a sua cultura unicamente através de actos deste tipo. Os ingleses que iam ao Globe aplaudir as peças de Shakespeare não tinham consciência de estar a praticar um «acto cultural», e os fracenses que riam às gargalhadas das comédias de Molière ter-se-iam rido muito mais se soubessem que essas comédias estavam destinadas a ser postas em cena, anos mais tarde, à custa de subsídios estatais, para deleite de gente empenhada em «adquirir cultura».
A cultura de um povo não pode medir-se apenas através dos «actos culturais conscientes» que pratica, mas também - e quem sabe se principalmente - através do carácter que imprime ao seu quotidiano, do que faz para se divertir, do que tem por necessário e por desnecessário, e dos hábitos que o levam a actuar desta ou daquela maneira, independentemente das regras de vivência que lhe são impostas seja a que título for.
Todos praticamos, por exemplo, um «acto de cultura inconsciente» várias vezes ao dia, sempre que comemos. «Inconsciente», porque não nos apercebemos, necessariamente, de que tudo o que se relaciona com o «acto de comer» é simultâneamente uma fonte e uma expressão de cultura, do horário das nossas refeições, aos pratos que escolhemos, passando pelos ingredientes que entram na sua confecção.
Comer, por outras palavras, não é, culturalmente, um acto avulso mas,antes pelo contrário, um acto culturalmente tão importante que se pode atribuir um conteúdo sociológico à célebre frase de Brillat Savarin: «Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és».
Isto, porque comemos, antes de mais, com a fé; depois com a memória e, por último, de acordo com um conjunto de mitos culturais que nada tem a ver com o paladar que temos e que julgamos ser o elemento determinante nas nossas opções culinárias.
O conceito que um povo tem do universo e da vida exprime-se, em grande parte, através da sua religião, e esta impõe-lhes normas de conduta que afectam profundamente o seu quotidiano.
Dado que o «acto de comer» faz parte integrante desse quotidiano - é o único sem o qual nenhum povo pode passar, seria impossível que ele não tivesse sido, desde muito cedo, objecto de regulamentação religiosa.
Para se compreender bem o vínculo alimentação/religião é preciso ter em mente que o «acto de comer», ainda que individual na sua fase final, assenta em relações sociais que o colocam numa situação de dependência em relação à colectividade. Quem come tem de escolher os seus alimentos dentre os que lhe são facultados pela colectividade, chegando mesmo ao ponto, em casos extremos, de estar sob alçada desta no que se refere às quantidades que come. Se a colectividade não dispuser de trigo, ele terá de comer pão de milho, e basta uma guerra para que tenha de se submeter a um racionamento imposto por ela, ainda que se oponha ao conflito.
O carácter colectivo do «acto de comer» talvez não seja imediatamente evidente, mas não deixa, por isso, de ser um dado concreto que está na raiz de inúmeras opções tidas por assentes em valores exclusivamente gastronómicos. Quem entra num restaurante, por exemplo, raras as vezes tem consciência de que a «ementa» que lhe é entregue foi criada em função do gosto do maior número possível de pessoas, isto é, da cultura da colectividade, e não do seu gosto pessoal, e quem aceita uma ementa está, assim, a integrar-se culturalmente na sua colectividade.
É por esta razão que o «acto de comer» se foi transformando, com o decorrer do tempo, num acto festivo que, sob a forma do «banquete», adquiriu a natureza de um autêntico ritual.
Foi no decorrer da última ceia que Cristo instituiu o sacramento da comunhão, associando-se, a si e ao cristianismo, a dois alimentos inconfundíveis - o pão e o vinho.
Cerca de seis séculos depois da última ceia, surgiu na área mediterrânica uma nova religião que se associou imediatamente ao «acto de comer», proibindo o consumo do álcool e, portanto, do vinho, aos seus adeptos.

Tem continuação...